Desnutrição hospitalar no brasil

Carlos Daniel Magnoni
Celso Cukier
Maria Isabel Correa

No Brasil, pais de contrastes, já tão demonstrados em trabalhos científicos e jornalísticos bem como por meio de filmes, poemas e musicais, existe um grave diagnóstico que de forma contundente aflige parcela importante de profissionais das áreas de atenção á saúde.
Na história da medicina brasileira sempre houve um discreto distanciamento entre as ações voltadas á nutrição por parte da classe médica. Remonta ao currículo médico, e as suas conotações sócio/econômicas, as causas desse distanciamento. Devemos concordar que excetuando o pediatra, o geriatra e o endocrinologista, poucos profissionais médicos dedicavam-se a orientar e direcionar terapêuticas de enfoque nutricional.
No passado recente, por volta de 1996, a Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral inicia estudo multi cêntrico especialmente direcionado à avaliação da desnutrição hospitalar no Brasil.
Na publicação dos resultados houve um desencadear de ações, motivadas pelos alarmantes índices de desnutrição hospitalar encontrados e pelas conotações do desconhecimento desse diagnóstico, evidenciadas pelas análises dos prontuários.
A desnutrição, em pacientes hospitalizados, é uma realidade. Esta tem diversas causas, salientando-se a própria doença do paciente e seu tratamento (quimioterapia, radioterapia e cirurgia). Os aspectos sócio-econômicos prévios à internação, o jejum prolongado para a realização de propedêutica e o desconhecimento médico do problema são outros fatores de risco para piorar o estado nutricional . Há vinte anos atrás, Butterworth chamou a atenção para "O esqueleto no armário do hospital", sugerindo que com pequenas mudanças de atitude, esforços administrativos e apoio financeiro, o quadro de desnutrição iatrogênica poderia ser revertido e gerar grandes economias. Paralelamente, estudos sobre a prevalência de desnutrição hospitalar, usando dados objetivos, foram publicados, mostrando que a desnutrição moderada estava presente em 48% dos pacientes, e a forma grave em 31% , . Todavia e apesar do advento dos antibióticos, da era de medicina molecular e do uso de métodos de diagnóstico por imagem sofisticados, a nutrição parece ter sido deixada para segundo plano ou, até mesmo, esquecida, a tal ponto que a prevalência da desnutrição hospitalar continua sendo alta. No Brasil, o Inquérito Brasileiro de Avaliação Nutricional Hospitalar (IBRANUTRI), realizado em 1996, mostrou que dos 4,000 doentes avaliados, 48,6% estavam desnutridos, sendo que a desnutrição grave foi encontrada em 12,7% dos casos . ( Quadro I )

Quadro I – Distribuição da desnutrição no Brasil por regiões

Região Nutridos Desnutridos moderados Desnutridos graves
Brasil 51,9% 35,5% 12,6%
Norte/Nordeste 36,1% 43,8% 20,1%
Sudeste 57,2% 33,3% 9,5%
Sul 57,1% 30,8% 12,1%
Centro-Oeste 65,2% 27,9% 6,9%

Assumindo que doença comum é aquela com uma prevalência superior a 10% , a desnutrição é a doença mais freqüente nos hospitais. Assim sendo, há que se avaliar a relação entre custo com o tratamento nutricional de pacientes hospitalizados e os benefícios desta forma de terapia. Por tal, algumas questões importantes devem ser levantadas:
1. É o dinheiro gasto para detectar e tratar a desnutrição bem aplicado?
2. A Terapia Nutricional analisando custo/efetividade é importante, mesmo quando não há desnutrição?
3. Há vantagens em se manter equipes especializadas de Terapia Nutricional?

1. É o dinheiro gasto para detectar e tratar a desnutrição bem aplicado?

A incidência de complicações infecciosas e não infecciosas está aumentada de 2 a 6 vezes em pacientes desnutridos . Pacientes submetidos a amputação de pé, quando desnutridos apresentaram um índice de cicatrização de 18%, enquanto o grupo de nutridos teve as feridas cicatrizadas em 86% dos casos . Doentes submetidos a tratamento cirúrgico de doenças gastrointestinais não malignas apresentaram um índice de complicações de 59% quando desnutridos, e de 20% quando tinham um bom estado nutricional . O tempo de permanência hospitalar em pacientes desnutridos é significativamente maior e pode estar aumentado em até 90% . A mortalidade também está aumentada em pacientes desnutridos.
Os pacientes desnutridos que morrem no hospital não representam uma economia de custos: a morte por desnutrição é lenta, torturante e cara. Tucker , num trabalho de revisão envolvendo 70 hospitais e 22 publicações, mostrou que nos últimos 15 anos os riscos de desnutrição hospitalar variam de 25 a 90% de acordo com a instituição e o tipo de doentes avaliados. Além disto, este autor evidenciou uma diminuição de 2,1 dias de internação naqueles pacientes que haviam recebido algum tipo de terapia nutricional, com conseqüente redução dos custos hospitalares. Segundo ele, houve uma diminuição de US$ 697/dia naqueles pacientes que receberam terapia nutricional nos três primeiros dias após a admissão. Mears demonstrou que o uso de terapia nutricional adequada resultou numa diminuição de tempo médio de permanência hospitalar de 12 dias, com concomitante, redução de custos de aproximadamente US$ 132.000,00.
Os resultados preliminares do seguimento do IBRANUTRI, mostram que os doentes desnutridos tiveram significativamente mais complicações (26,5% nos desnutridos e 18,5% nos nutridos), permaneceram mais tempo internados(13,9 dias nos desnutridos e 11,9 dias nos nutridos) e a taxa de mortalidade foi superior (10,2% nos desnutridos e 4,6% nos nutridos).

2. A Terapia Nutricional analisando custo/efetividade é importante, mesmo quando não há desnutrição?

Moore mostrou que pacientes previamente nutridos, vítimas de trauma abdominal grave, quando nutridos precocemente, apresentaram um índice de infecções inferior, com custo diminuído em US$ 3.000,00/ paciente, quando comparados àqueles que receberam apenas hidratação intravenosa. Doentes idosos com fratura de colo de fêmur, ao receberem suplementação oral de 250 calorias e 20 gramas de proteínas, ficaram hospitalizados 20 dias menos, tiveram menos complicações (44% versus 87%) e uma taxa de mortalidade inferior, quando comparados ao grupo que não recebeu nenhuma suplementação .
O tipo de terapia nutricional a ser usada deverá respeitar critérios rigorosos. Sempre que possível, o doente deverá receber a nutrição via trato gastrointestinal, uma vez que este é o acesso mais fisiológico, que mantém a integridade da barreira protetora do trato gastrointestinal, diminuindo as chances de translocação bacteriana e preservando a imunidade da mucosa. Há relatos que o uso do trato gastrointestinal também diminuiria a resposta metabólica após o trauma . A nutrição parenteral, central ou periférica, deverá ser indicada sempre que não for possível oferecer as necessidades nutricionais pelo trato gastrointestinal. Esta representa, além de tudo, um custo significativamente maior quando comparada à nutrição enteral.
Um estudo de projeção de custo-benefício realizado pelo Sistema Integrado de Administração Técnico-Operacional Integral à Saúde – São Paulo (SIATOEF), usando como exemplo a cidade de São Paulo mostrou:
· As intervenções com a Terapia Nutricional em pacientes do SUS representam 0,14% dos custos totais com saúde e 0,33% do custo das internações.
· No cenário em questão, a média de permanência hospitalar é de 5,52 dias, ou 132 horas e 29 minutos (esta média é inferior à encontrada pelo IBRANUTRI, no Brasil). Se houver a redução de 1 hora e 29 minutos (1% do tempo de internação), ou seja se a média cair para 131 horas e 9 minutos, todos os custos da Terapia Nutricional estarão cobertos, sem nenhum ônus adicional para o SUS.
· No cenário SUS, há indicações de que seria necessário aumentar os custos da intervenção com Terapia Nutricional em 960,54%. Este acréscimo, sob articulações sinérgicas, gera redução de cerca de 12,46% no custo das internações e de 3,94% no custo total dos programas-AIS.
· Um cálculo baseado nestes parâmetros mostra que a economia anual factível alcançada com o uso de Nutrição Enteral na cidade de São Paulo é da ordem de R$ 104.243.140,00. Ou seja, cada R$ 1,00 investido em Terapia Nutricional Enteral gera R$ 4,13 de economia total.
Atualmente, o preço médio da solução Nutrição Parenteral Total (desconsiderando-se os valores de cateteres, equipos, curativos e tempo de enfermagem, para cuidados) é de R$ 0,10 por uma caloria. Considerando-se um doente de peso 60 Kg, isto corresponderia a R$ 180,00/dia. Caso este doente estivesse em uso de Nutrição Enteral o valor médio da dieta seria de R$ 0,015 por caloria ou R$ 27,00/dia (não considerando sonda, equipos, frascos de armazenamento). Em resumo a Nutrição Enteral é significativamente mais barata que a Nutrição Parenteral. Mais importante ainda, a Terapia Nutricional comparada ao preço de antibióticos que, quando do desenvolvimento de complicações, têm que ser usados é menos cara (por exemplo, preço médio de antibióticos usados para tratar infecções hospitalares – R$ 65,00).

3. Há vantagens em se manter equipes especializadas de Terapia Nutricional?

Diversos estudos na literatura têm demonstrado a economia de custos quando a terapia nutricional é realizada por uma equipe multiprofissional. A implementação de uma triagem nutricional, num hospital pediátrico, realizada por uma equipe de terapia nutricional, reduziu o tempo de internação de crianças desnutridas de 15 para 13 dias e proporcionou um tratamento nutricional mais adequado a estas crianças. O gasto imediato aumentado, foi superado pela economia de horas totais no tempo de trabalho das nutricionistasxvi. Num estudo prospectivo, durante 2 anos, num hospital universitário, quando a nutrição parenteral foi feita pela equipe houve, significativamente, menor incidência de complicações (3,7% versus 33,5%) em comparação com as nutrições realizadas por não membros do grupoxvii. A indicação adequada da melhor via de acesso para terapia nutricional, no caso, o uso de nutricão enteral ao invés de nutrição parenteral representou uma economia de aproximadamente US$5.000,00 por pacientexviii. De sorte que, a prática de terapia nutricional quando feita por equipes multiprofissionais representa uma medicina melhor com significativo benefício para o paciente e instituição.

Por fim cumpre-nos o dever de aprofundar o conhecimento do impacto da inserção de terapia nutricional nos pacientes desnutridos. A terapia nutricional pode reverter o quadro nacional em termos de cuidados com pacientes graves.
Na análise histórica do passado da medicina, facilmente poderemos identificar um profissional de atenção à saúde junto das tribos que vagavam pelos campos africanos ou europeus. Os indivíduos, que nesses grupos dedicavam-se ao ato de curar, somente podiam implementar terapias nutricionais (sopas, chás, sucos… ) como forma de tratamento. Reside, desse modo, na nutrição a configuração da primeira especialização.
A Dra. Maria Isabel Correa, finalizou no inicio de 2001, trabalho de doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Neste trabalho identificou a evolução clinica em pacientes graves e a influência da terapia nutricional no seu prognóstico. Os dados levantados acerca de utilização de terapia nutricional versus morbidade e custos hospitalares, mostrou que gestões em custos podem ser aplicadas no manuseio do paciente desnutrido. No entanto, a simples inserção de cuidados nutricionais mais elaborados insere maior efetividade e produtividade ao setor saúde, como um todo, e às ações de saúde nos hospitais.
Resta-nos, profissionais médicos, a ação política, como ato de cidadania e a preocupação com o diagnóstico de desnutrição hospitalar. Desse modo, na transmissão de conhecimentos, na atenção à saúde e no lidar diário com os pacientes, poderemos influenciar as novas gerações para o primeiro diagnóstico e tratamento na pratica medica.

Referências:

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Butterworth CE. The skeleton in the hospital closet. Nutrition Today 1976;9:4 .
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Waitzberg DL, Correia MITD. Inquérito Brasileiro de Avaliação Nutricional Hospitalar (IBRANUTRI). RBNC 1999, in press.
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Moore EE, Jones TN. Benefits of immediate jejunostomy feeding after major abdominal trauma – a prospective randomized study. J Trauma 1986;26:874-9.
Delmi M, Rapin CH, Bengoa JM, et al. Dietary supplementation in elderly patients with fractured neck of the femur. Lancet 1990;335:1013-6.
Chiarelli A . Effects of early enteral nutrition on burn patients. Am J Clin Nutr 1990; 51: 1035-9 .
xvi Smith AE, Powers CA, Cooper-Meyer RA, Lloyd-Still JD. Improved nutritional managemente reduces length of hospitalization in intractable diarrhea. J Parent Ent Nutr 1986;10:479-81.
xvii Nehme AE. Nutritional support of the hospitalized patient: the team concept. JAMA 1980;243:1906-8.
xviii O’Brien DD, Hodgers RE, Dau AT, et al. Recommendations of nutrition support team promote cost containment. J Parent Ent Nutr 1986;10:300-2.

Este artigo possui como autores, alem do referenciado nesse crédito, os presidentes da SBNPE gestões 1997 a 2001, Dra. Maria Isabel Correia e Dr. Celso Cukier
Dr. Carlos Daniel Magnoni – Cardiologista e Nutrólogo – Hospital do Coração, São Paulo – SP
Presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral
End.: Rua Inhambú, 917 CEP 04520-013